A beterraba forrageira e a revolução da alimentação de inverno na Nova Zelândia
Quando discutimos e avaliamos a produção leiteira da Nova Zelândia, um dos motivos que faz desse pequeno país um dos maiores e mais efetivos produtores de leite do mundo é a competência no cultivo de forragens alternativas, as quais são usadas em granjas leiteiras de forma estratégica, levando em consideração o clima, a fase gestacional da vaca, o período seco, ou, se o rebanho está em lactação. Além disso, a área disponível para o plantio na propriedade.
Para se criar um panorama da evolução do manejo nutricional do rebanho leiteiro kiwi, o total de alimento consumido aumentou 160% nos últimos 25 anos. Essa evolução ocorreu principalmente por dois motivos:
a) O aumento do número de cabeças: de 2,5 milhões de vacas em 1990, para quase 7 milhões em 2018;
b) Maior quantidade de matéria-seca ingerida por animal/ano.
Na década de 90, o consumo médio era de uma tonelada por temporada, já em 2018 um único animal chega a ingerir por volta de cinco toneladas, justificando os grandes volumes produzidos e os altos valores de sólidos no leite. Podemos enumerar a silagem e a beterraba forrageira como as principais estratégias de alimentação usadas como facilitadoras para alavancar a produção.
Nos últimos dez anos, a área de cultivo de beterraba saltou de 10.000 hectares para incríveis 75.000. Vale esclarecer, no entanto, que o sistema neozelandês, apesar do uso desses suplementos, se baseia na produção a pasto. A pastagem é a principal base de alimentação dos animais e os produtores consideram o cultivo como economicamente rentável e o crescimento vigoroso durante a maior parte do ano.
Atualmente, no estado onde trabalho, Canterbury, um dos mais produtivos do país e onde ocorreu o início do uso dessa nova tecnologia, 80% das fazendas lançam mão dela na alimentação. Utilizada tanto para vacas como para novilhas de reposição, a alternativa é o ‘escape’ dos produtores nos meses de pastagem escassa (período que ocorre final do outono e durante todo o inverno).
Abaixo, vou citar algumas características sobre a Beta vulgaris, mais conhecida como fodder beet ou beterraba forrageira.
- É altamente palatável;
- Possui boa digestibilidade;
- As vacas adoram;
- Apresenta alto rendimento de produção de matéria-seca (15-25 toneladas MS/ha);
- O ciclo plantio-colheita leva 150 dias;
- O custo médio é R$ 7 mil por hectare para o cultivo;
- Cresce em solo com pH por volta de 6,3;
- É resistente às condições climáticas adversas;
- Possibilita a mecanização do plantio e da colheita;
- Pode ser servida plantada ou no cocho;
- Pode ser armazenada por até cinco meses após colhida;
- Auxilia na melhora do escore corporal do rebanho no inverno e no final da gestação;
- Aumenta o teor de sólidos na lactação seguinte e também;
- Possui flexibilidade de utilização em diferentes estações do ano.
Apesar dos muitos e diferentes benefícios anteriormente citados, há também alguns pontos negativos, fato que exige do produtor conhecimento técnico, paciência e muita atenção na hora de servir o alimento ao rebanho. O tratador deve ter em mente que usar a beterraba é desafiador, já que pequenos descuidos podem ser fatais e decisivos para o resultado de toda a próxima temporada.
O grande teor de carboidratos altamente fermentáveis e o baixo teor de fibras contido no bulbo predispõe à ocorrência de acidose láctica ruminal, a qual certamente ocorrerá quando houver excesso de ingestão, ou seja, erros no cálculo da quantidade fornecida. Também, pode ocorrer quando houver negligência na suplementação de fibra (feno ou palha) e/ou falha na transição das dietas, já que anteriormente a alimentação era basicamente de pasto e agora, passa a ser exclusivamente de beterraba, o que pode desencadear problemas indesejados.
A planta apresenta ainda deficiência de fósforo, a qual é resolvida com uma suplementação diária de 50 gramas/animal de fosfato dicálcio misturado à silagem ou na água, garantindo assim 9 gramas de fósforo ao dia e suficiente para a manutenção do equilíbrio fisiológico.
Sabemos ainda que o funcionamento do rúmen é otimizado entre um pH de 6 e 7, equilíbrio que é garantido por agentes tamponantes presentes na saliva. Quando o animal ingere o fodder beet, ocorre uma menor exigência de mastigação devido a sua alta palatabilidade, diminuindo drasticamente a produção fisiológica de saliva e consequentemente dos agentes tamponantes presentes nela. Esse fato pode favorecer o crescimento de bactérias produtoras de ácido láctico, cenário que diminui o pH ruminal e desencadeia a indesejada acidose.
É altamente recomendado que juntamente ao cultivo do fodder beet o fazendeiro plante uma forragem alternativa que seja rica em fibra, fornecendo aos animais que não se adaptarem ou aos que consumirem em excesso. Aqui na fazenda que trabalho a opção para acompanhar a beterraba foi a couve, que é bem inferior ao fodder beet em carboidratos mas, apresenta alto teor de fibras, características desejáveis por se tratar de uma forragem terapêutica.
Diariamente ficamos atentos a animais com sinais clínicos de acidose, manifestados por exemplo por meio do isolamento social, a não ingestão de alimentos, apatia e perda de escore corporal. Observar algum desses comportamentos é motivo para a imediata mudança da dieta.
Para o produtor iniciar o uso dessa estratégia na sua propriedade de forma eficiente e organizada deve-se seguir um manual com algumas diretrizes e fazer um planejamento detalhado desde o cultivo até o fornecimento da nova dieta aos animais.
O primeiro passo é realizar a escolha da variedade que será cultivada. No mercado neozelandês, estão disponíveis três diferentes plantas, classificadas de acordo com o teor de matéria-seca presente no bulbo (baixa matéria-seca [12-16%], média [16-18% e usada aqui na fazenda e alta [18-22%].
Vale ressaltar que algumas variáveis alteram esses valores, como por exemplo: bulbos frescos são mais pesados pois possuem mais umidade, enquanto que bulbos mais velhos ou cultivados em locais secos, apresentarão maior porcentagem de matéria-seca, mas serão mais leves.
Outro ponto determinante é a escolha da estação que o fodder beet será arraçoado ao rebanho. Caso a escolha seja o outono, haverá a extensão do período de lactação, buscando realizar gradativamente a transição para a secagem e entrada do inverno. Se for selecionado apenas o uso no inverno, a planta ajudará os animais a suportar baixas temperaturas pelo grande aporte de energia, incrementará o escore corporal, ajudará no crescimento do feto e servirá como substituto da gramínea azevém que não cresce nessa época. No verão ela atua como balanceadora do excesso de proteínas fornecido pelas pastagens ricas em nitrogênio, contrabalanceando com a alta disponibilidade de carboidratos presentes no bulbo.
Mais uma característica importante que deve ser considerada no planejamento é o formato e a área do piquete que será usado para o cultivo e posterior alojamento e fornecimento da forragem aos animais. O local escolhido deve ser de preferência retangular, com as faces paralelas e longas (200-300 metros, um metro de face por animal), garantindo que não haja competição e que todo o rebanho tenha acesso ao alimento ao mesmo tempo, garantindo o ganho de peso uniforme.
Certifique-se diariamente que a cerca de contenção foi bem feita e está segura, cheque a corrente elétrica do arame e os standarts que o suportam pelo menos três vezes ao dia, "quebra de cercas" é o pior cenário possível pois resulta certamente em excesso de ingestão, ou seja, acidose e prejuízos.
Dentre todas os cuidados que devemos ter no manejo do fodder beet, o que dizem por aqui é que a transição da dieta é a tarefa mais desafiadora e que exige maior atenção da equipe da fazenda. A alimentação muda drasticamente da gramínea azévem para o bulbo da beterraba, o qual é rico em carboidratos altamente fermentáveis (55-70%), mas pobre em fibra (12-22%) e proteína (6-10%).
O princípio na realização da transição é adaptar a microbiota ruminal para a fermentação do novo alimento sem que haja comprometimento da digestão, e ela pode ser realizada de duas maneiras, que dependem basicamente da estrutura disponível e da disponibilidade de maquinário.
Na primeira delas os bulbos serão colhidos e misturados com a silagem, servindo-os no cocho durante a ordenha. A outra forma, a qual é usada aqui na fazenda e exige menor capacidade de investimento, se dá através do piquetiamento da área cultivada, dividindo-a diariamente de acordo com a necessidade por animal.
Inicie a transição fornecendo 0,5-1kg MS/vaca/dia, deixe o rebanho por no máximo 20-30 minutos nas primeiras alocações (vacas ingerem por volta de 3 kg de fodder beet/hora), aumente gradativamente um quilo a cada dois dias e amplie o tempo de permanência até chegar no último dia da transição, que é quando o rebanho estará completamente adaptado e se alimentará exclusivamente de beterraba (10 kg/MS/animal/dia, esse valor depende do peso vivo, escore corporal e potencial dos animais).
A transição bem sucedida demora em torno de 14 à 21 dias e durante todo esse tempo é regra básica haver ingestão de pasto após a ordenha e previamente ao fodder beet: ignorar essa regra é negligência fatal, comprometendo o resultado. Após as primeiras alocações do rebanho e também quando houver alteração do valor de matéria-seca ingerida, é altamente recomendável acompanhar a alimentação e o comportamento dos animais por trinta minutos.
O cenário ideal é uma homogeneidade na quantidade de bulbos ingeridos por vaca, que não haja sobras no final do dia, que os animais não fiquem com fome após se alimentarem, que 100% do rebanho ingira o alimento ao mesmo tempo e que não haja animais com sinais clínicos de desordens metabólicas.
Feita a transição de forma correta o produtor está pronto para entrar no modo "piloto automático", ou seja, alimentação segura e exclusiva de fodder beet, usufruindo apenas das vantagens, que se refletem no excelente escore corporal dos animais no final do inverno ou na melhora da produtividade no leite.
Aqui na fazenda o rebanho de 900 vacas foi dividido em três grupos diferentes de acordo com o escore corporal apresentado no final da lactação (maio). Separar os animais por grupos nos permite planejar e adequar a dieta de acordo com a necessidade, uniformizando o ganho de peso e para que no início da lactação (agosto) tenhamos um padrão ideal de escore.
As vacas que apresentaram escore corporal ruim ganham silagem (1Kg), fodder beet (11kg) e feno ad libitum. Já os animais com o escore de mediano a bom, ganham apenas fodder beet (10kg e 8 kg, respectivamente) e feno. Em aproximadamente dez dias haverá no nosso sistema de manejo o início da "transição reversa da dieta" dos animais que irão parir em agosto, havendo uma diminuição gradual e diária na quantidade de beterraba ingerida.
Os motivos para se fazer a transição reversa é novamente, adaptar a microbiota ruminal a um novo alimento e principalmente, diminuir a quantidade de energia fornecida, haja vista que no final da gestação a vaca direciona a maior parte da energia para o crescimento do feto e não para si, o que eventualmente poderia acarretar no aumento da incidência de distocias.
A "transição reversa" é feita nos mesmos princípios da transição entre pasto e fodder beet, diminuindo 1 kg de MS por vaca a cada dois dias e dessa forma, preparando os animais para a lactação à pasto.
O fodder beet tem sido muito usado pelos fazendeiros aqui da Nova Zelândia e vem ajudando a diminuir os custos com alimentação durante todo o inverno por meio da substituição de expressivas quantidades de silagem, gerando uma economia de 40.000 dólares a cada 1000 animais alojados.
Além da economia no bolso, o produtor incrementa o aporte de energia pois a beterraba apresenta superiores 12 Mega Jaules (MJ) por quilograma de MS, enquanto que a silagem de milho fornece apenas 10 MJ. Apesar de todos os benefícios financeiros e zootécnicos há um consenso geral que essa tecnologia pode ser muito mais explorada e estudada, haja vista que não se sabe se o uso aumenta ou diminuiu a vida produtiva do animal ao longo prazo e se o plantio impacta negativamente na qualidade do solo.
Como mensagem final, indico ao produtor que optar pela beterraba forrageira, que fique atento aos detalhes e faça um estudo minucioso da viabilidade econômica da implementação. Além disso, defina um objetivo alvo para o uso, adquira conhecimento técnico, esteja ciente que o sistema da fazenda aumentará em complexidade, esteja preparado para contratempos e principalmente, tenha paciência na hora da transição da dieta, ela é o segredo para o sucesso!
Fonte: GUILHERME RISTOW veterinario formado no CAV-UDESC LAGES,atualmente trabalha em uma fazenda de gado leiteiro no estado de Canterbury-Nova Zelândia.